quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Príncipe Inventado

Sentei na calçada e fechei os olhos.

- Você não tinha esse direito! - gritei.


A chuva fina começava a cair em gotas maiores molhando rapidamente o meu suéter cinza. Tudo era cinza. Os carros eram sem cor, minha alma era desbotada. Eu abracei meus joelhos e gemi.

- Não tinha o direito de fazer o que? - ele perguntou com aquela voz que poderia ser engraçada em um outro momento, mas agora me doloria a cada palavra proferida. - Não tinha o direito de te trair? Ora faça-me o favor.. eu não sou nada seu! Não pense que eu sou, não cobre que eu seja!


Senti a martelada profunda e agúda de toda a verdade que ele jogava em mim como flechas inflamadas de sinceridade em excesso.

- Você não tinha o direito de me deixar desse jeito. Não deveria ter sido tão perfeito antes.. Quem você é agora? - tentei gritar, mas não era como se minha garganta pudesse me obedecer, então sussurrei.

- Sou agora o que sempre fui.. Eu mesmo. Distante demais de você pra que pudesse dizer que me conhece.

- Eu.. - pateticamente estendi as duas mãos em sua direção, tentando agarrar pelas pernas o pouco que ainda me restava do cara que conheci. - Eu.. sabia quem você era!

- Não, não sabia. Você conheceu uma pessoa que criei pra você. Uma pessoa fantasiosa e, como você disse, perfeita. - ele se abaixou e puxou meu queixo pra chuva. - acorda, princesa, contos de fadas não existem.


Soltei as pernas dele e deixei minhas mãos penderem sem vida no asfalto molhado. Já não me importava mais se elas ardiam. Nada poderia arder tanto quanto a sensação de queimado que beirava meu peito.

- Nunca achei que você fosse meu príncipe.. Eu só queria..

- O que você queria? - ele gritou pro alto com um sarcasmo exagerado. - queria que eu te pegasse no colo e levasse pro nosso palácio?

- Não, na verdade eu.. - não sabia mais o que dizer. Nem eu sabia o que queria dele. Será mesmo que esperei isso tudo?


As lágrimas de vergonha caíram instintivamente por meu rosto. O sentimento de humilhação era mais forte do que qualquer coisa.. As palavras doíam mais do que o frio. Eram mais geladas, eram mais cortantes. Soltei o ar num impulso e me levantei.
Ele sorriu de canto e eu caí outra vez. Não, meu coração gritou, esse sorriso não!


- Imagino todas as perguntas imbecis que você está se fazendo agora. - ele murmurou por entre o meu sorriso.


O sorriso dele, mas que já era tão meu.

- Que perguntas? - eu sibilei de volta.


Tentei falar alto. Tentei mostrar indiferença, tentei ser mais forte que as lágrimas, mas elas eram pesadas.

- Ela é mais bonita do que eu? - ele disse num tom de arremedo. - Ela beija melhor do que eu? - o ouvi sussurrar bem próximo ao meu ouvido. - Por que ela e não eu? - ele finalizou com o único golpe mais profundo do que todas as verdades.


Estremeci dos pés à cabeça e soltei um murmúrio covarde. Ele estava certo. Eu realmente tinha me feito todas aquelas perguntas imbecis. Tive vontade de gritar pra que ele me respondesse uma a uma. Pra que me desse uma luz, pra que me estendesse uma mão, mas me vi sozinha outra vez naquele mar de angústia que já me afogava completamente. Era chuva, era lágrima, era dor. Tudo entrando devagar por todos os poros do meu corpo. Cerrei os dentes.

- Pare, por favor. - gritei no tom mais baixo que um grito desesperado pode ter.

- Por que eu pararia? - ele ironizou.

- Por que dói.. - eu solucei. - Dói demais!


Eu já desejava que ele me deixasse pra apodrecer. Que me largasse sozinha com os cacos fétidos do meu coração vazio. Mas ele não seria tão misericordioso. Se fosse assim seria tão fácil..

- Não deveria doer, deveria? - ele sentou-se do meu lado na calçada e pegou a minha mão entre as suas. Não senti nada. Nem o calor estranho que me subia até o rosto cada vez que ele passava por perto. Agora eu sabia que não conhecia esse homem.

- Não.. Não deveria. - eu me soltei dele e levantei de novo. Dessa vez eu não ia deixar que aquele sorriso me desequilibrasse. - Mas você está certo. Eu fantasiei demais. Eu inventei demais. A culpada sou eu por todos os meus fantasmas. Agora vá, me deixe em paz.. Siga seu caminho e me deixe viver só com a lembrança do que fizemos. Por que não tivemos e nem somos, só fizemos.


Ele levantou o rosto e me encarou na penumbra. Eu não sustentei seu olhar. Não precisava mais, não era mais o meu príncipe inventado. Fechei os olhos apenas por um segundo pra secar as lágrimas que ainda se esgueiravam por ali e, quando os abri, ele não estava mais lá. Tinha desaparecido junto com a chuva. Tinha sumido junto com a rua. Eu estava só. No meu quarto, ainda abraçada aos meus joelhos, mas, finalmente, em paz.

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